Nuura

Preso nas catacumbas do castelo, o garoto jazia em fome, sede e tédio. “Não aguento mais”, pensava. “Quero sair logo”, murmurava. As correntes que o prendiam eram gastas, machucando o seu pulso. Correntes que prenderam fugitivos de outros reinos, homens sem palavra, deserdados do poder de gerações e gerações de reis e rainhas. Num reino em que as névoas cobriam boa parte do caminho até suas entranhas, névoas eram observadas pelo garoto, pois sua visão turvava a cada minuto que passava.

Começava a fechar os olhos. Imaginava a festa, uma reunião de máscaras conhecidas e desconhecidas da população. De repente, vê-la por detrás de longas madeixas, de um castanho-claro quase negro, que descia até a curvilínea posição do cóxis, no qual reparava um desenho perfeito de prazer incontrolável. Quando ela se virou e deixou a máscara cair, encantou-se com as raras pérolas negras de seus olhos; com o leve sorriso unilateral, com a tez branca e vívida de uma alteza. Ela o chamou e prontamente atendeu. Sentiu em seus lábios o fervor de um beijo que nunca tivera. Desejou-a intensamente. Agora estava lá.

“Ainda acordado?”

É ela.

“Eu quero sair daqui. Eu não aguento mais!”

“Calma, meu bem. É só mais um pouquinho…”

Nuura entra no calabouço. Suas vestes nobres estavam reduzidas ao vestido que usa por baixo da capa negra e dos acessórios de ouro puro. Estava linda naquela noite. O capricho das aias permitiu sê-la mais uma vez irresistível. Os braços cobertos pelas longas mangas do vestido transpareciam suas mãos: alvas, com poucas rugas, como se o tempo não passasse para ela. A parte superior com a gola alta deixa apenas visível seu rosto, num traçado puro e jovial, como nenhuma outra rainha um dia tivera no Reino das Névoas. Nuura era a perfeição em transe.

“Minha senhora, já ando fraco demais. Não como! Mal bebo! Preciso sair daqui…”

Ela cinge o olhar. Abre um leve sorriso.

“Será breve, meu bem. Trouxe sua comida. Espero que não menospreze o que uma rainha lhe oferta para o desjejum.”

Não estava em condições de negar. Precisava comer. Antes de desenrolar o embrulho trazido pela rainha, porém, bebeu com voracidade o líquido também trazido. Com desejo. Descia pela garganta como as águas de uma catarata. Encontrava seu estômago e o resfriava, aliviava um calor que não existia. A cada gole, um desejo profundo de que houvesse ainda mais. Nuura o observa com ternura, mas maliciosa: logo seu desejo se concretizaria.

Agradecido pela bebida, ele a observa. Seu olhar, antes turvo, agora se clarifica: observa toda a beleza de sua majestade. A claridade, no entanto, continua: a pele clara da rainha fica branca; o calabouço deixa de ser marrom e se transforma em bege, amarelo; as correntes, negras, clarificam tanto que não mais se observam. Estava livre. Livre novamente. Uma dor lhe esquenta o peito. Espalha-se pelo tronco. Encontra os membros. Dói demais. Enreda-se pelo chão. O corpo se contorce sozinho. As mãos diminuem. Os pés também. Ele em si perde tamanho. Ganha em pelos. Grita como se não houvesse nada ou ninguém próximo. Grita ainda mais alto. Palavras de dor e lamento, interjeições que passam de vogais e consoantes a um único e surdo grito. Engasga. Uiva. Uiva fortemente.

A rainha observa com destemor. O debate do garoto aos poucos vai parando, lentamente. Não mais uiva de dor. Não mais reclama da prisão. Está sem fome. Sem sede. Está cansado, enfim. Nuura tira os grilhões. Pega-o no colo e o leva pelo corredor. Sons de gotas escorridas pela parede e chocadas no chão são as únicas companheiras presentes. Nem os insetos se atrevem a se aproximar do local. A rainha apaga as tochas com sopros homéricos, de um pulmão fortificado pelo tempo. Tempo esse refeito por ela.

Chega à saída. Abre o portão, pouco distante do local. Repousa o ser ao lado externo. Beija-lhe a testa e retorna ao castelo. Bate as mãos umas nas outras. “Pelos”, ela pensa, desprezando. “Uma rainha precisa estar bela sempre… Para sempre.”. Olha para trás: nada. Olha para o céu nublado, noite de uma lua cheia desigual, tamanha proximidade estava com o castelo das névoas. “É hoje que meu príncipe recebe mais um súdito”, ironiza.

Retorna pelas catacumbas, mas em seguida sobre pelas escadarias reais. Fecha todas as portas com suas chaves – única detentora das passagens mais secretas do castelo. Olha para todos os lados, a fim de não ser observada. Sobre os lances de escada que levam a seu quarto. Passa pelo de Niev, com a porta entreaberta. Lê silenciosamente. “Que livro estranho”, pensa. “Parece que já o peguei antes, não sei”. Ainda assim, pé ante pé, sai do corredor. Observa a palma da mão – lisa. Levanta um pouco a manga da camisa: lisa. Um pouco mais: ainda seca, pouco enrugada. “Está funcionando”, alegra-se. Sobe mais um lance de escadas. Chega ao seu quarto.

“Espelho, espelho meu. Observa-me! Veja meus traços! Eis defronte a ti a mais bela de todas as mulheres?”

Do espelho, uma armação antiga, enorme, de madeira cingida pelo tempo e pelos óleos da rainha, uma imagem se transfigura: o que era reflexo de Nuura é agora um repositório de fumaça, de onde surge um rosto masculino, de traços idosos, sem olhos ou dentes, que prontamente serve sua majestade.

“Sim, minha rainha. És a mais bela de todas! Devo dizer-te que tua beleza necessita cada vez mais de tuas presas: o tempo é inimigo da vaidade! Se quiseres manter-se pura, mais pureza deverás extrair para tal.”

“Não há riscos para que minha beleza seja destronada, meu glorioso espelho? Ou devo apenas me preocupar com meus jovens?”

Um silêncio se fez breve. O rosto presente no espelho move-se para cima. Desce. Aponta para o lado. Aponta para o quarto mais próximo. O da porta entreaberta.

“Maldição”, pensa.

Na porta dos fundos do palácio, um animal se levanta. Cansado e com dor, move-se lentamente para o meio da floresta. Observa-se, como num susto. Uiva novamente. Corre. Corre para longe. Passa por árvores, tocos caídos, plantas altas; pula troncos, desvia da água. Até que se encontra com uma matilha.

Do alto da torre, Niev ouve tudo. Sente medo. Não quer lobos próximos de si. Sente, contudo, um doce amargor pela vida que eles têm.

 

(Inspirado na obra de Camila Fernandes, “Reino das Névoas – contos de fada para adultos” – http://reinodasnevoas.blogspot.com.br/)

por Lucas Postado em Conto

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