Amantes

O dia de chuva dificultava seu retorno para casa. O trânsito parado irritaria qualquer pessoa que estivesse há cerca de duas horas tentando apenas reencontrar seu lar, organizado, limpo, com comida pronta – era o dia em que a diarista o visitava. Com as duas mãos no volante e o olhar perdido num horizonte nebuloso, observando a luz vermelha do carro em sua frente, pensava no tempo perdido. “Que porcaria”, era a única expressão que saía de seus lábios.

Observa o relógio. São quase 19h30. A Marisa, sua faxineira, preparava tudo com carinho: “Seu Antônio, não deixa a comida esfriar. Fica ruim”, dizia. Ele apenas apartava os pensamentos em meio ao mau humor que lhe consumia a face. Os carros adiante andam um pouco. Ele também. Aumenta a velocidade: 5km/h, 10km/h, 20km/h. Para de novo. Buzinas. “Seu Antônio, tua roupa já tá no armário, dobradinha”, Marisa falar-lhe-ia, se chegasse a tempo de encontrá-la. Irritação. “Saco”, pensa. Buzina também. “Seu Antônio, seu café acabou. Precisa ir no mercado”. Fecha os olhos.

Observa Marisa chegando, no primeiro dia em casa. Era uma mulher robusta, baixa, amorenada pelo sol, volumosa em todos os sentidos. “Essas são as melhores, meu filho”, dizia sua mãe. Aceitou-a tranquilamente. Trabalhadora, nos primeiros dias transformou o pandemônio em um céu azul: toda a desarrumação do homem se viu tragada pela mão carinhosa e organizada de Marisa. Foi-se um primeiro ano exitoso: ele mesmo se sentia melhor no meio da arrumação promovida pela mulher. “Muito me agrada trabalhar pro senhor, Seu Antônio”, dizia ela, ao final do dia, véspera de Natal. Ele a pagou e ainda deu um presente: uma cesta com guloseimas variadas, vinho, castanhas. Coisas que Marisa nunca pensou em comprar. “Minha filha vai amar, Seu Antônio! Muito agradecida!”

Uma filha. Marisa não era sozinha no mundo. Nunca tivera a curiosidade de conhecer parente de subalterno. Já havia sido assim quando morava com a mãe, abastada pela pensão que recebia devido à morte do pai, funcionário do governo federal. “Não quero brincar com ele”, dizia, quando a empregada levava o filho para sua casa. A mãe o observava, seca, sem dizer sim ou não. Saía de perto e voltava ao quarto, para lá passar muito tempo sem dar sinal qualquer de vida.

Abre os olhos. Ainda parado, vê novamente o trânsito se adiantar mais à frente. Ainda assim, o carro adiante não anda, nem o posterior, nem o outro. Trânsito totalmente parado. Já bastante indignado, tira o cinto, bem como descansa as mãos nas pernas, sem pensar mais no volante. “Banho. É só o que preciso”, pensava. Observa as mãos novamente, semi-suadas, ordem de um trabalho duro como o do dia. Observa as mãos e lembra de Domi.

Dominique. Linda. Quando a conheceu, ela tinha vinte anos. Exuberante: morena jambo, cabelos lisos, ondulações corpóreas que fariam enlouquecer qualquer beato. Olhos verdes. Contraste amazônico com a serra gaúcha. Exótica. No dia que ela chegou na sua casa, quase não acreditou no que viu. “Seu Antônio?”, ela questionou. “Minha mãe ficou muito agradecida pelo presente”, dizia, timidamente. “Nós não temos como presentear o senhor, mas como gosto muito de escrever, eu te trouxe isso”. Estendeu a mão. Um envelope, meio amassado, como que trazido nas mãos o tempo inteiro para que não perdesse. Sensibilizado por aquilo, sabendo que a menina havia viajado de sua casa até a residência dele de ônibus, num dia quente, convidou-a para entrar. “Não quero incomodar o senhor”, ela dizia. “Não será nada disso”, responde.

Ela adentra o apartamento e se deslumbra com o que vê. “É tudo culpa de sua mãe”, brinca. “Ela é muito caprichosa mesmo, né? De vez em quando eu a ajudo, quando necessário”, ela afirma. O homem a observa com outros olhos. “Não creio que precises te desgastar na minha casa. Não é muito grande”, sente-se. “Mas é bonita. E tem livros”, diz Dominique, observando a estante de livros do dono da casa. “Fica à vontade”, ele diz, apontando para os livros. Ela sorri e segue até lá.

Antônio senta no sofá, defronte à biblioteca. Observa as costas de Dominique. Estava de short jeans. Branco. Uma camiseta um tanto surrada, mas ainda apresentável, azul clara, com alguns dizeres na frente. Não havia prestado atenção. Distribuída em uma altura mediana, seu peso era proporcionalmente disposto pelo corpo. “Ah, Seu Antônio, aquele livro ali de cima… As “Cartas” da Mariana… Adoro!” – quando ela fala nisso, põe-se na ponta dos pés. Percebe o quão rijas eram aquelas pernas, torneadas – seriam aulas de educação física ou o trabalho que fariam-nas? “Lindas demais”, pensava.

Aproxima-se e pega o livro para que ela veja sua edição. “Linda capa”, diz a ele. “Há muitos livros que poderias ler, caso tenhas interesse”, ele sugere. “Não, Seu Antônio, já tomo muito de seu tempo. Vou pra casa agora”, ela diz. “Tu quem sabes”, responde, “mas leve esse livro contigo” – aponta para “Lolita”.

Ela leva o livro consigo. Olha para trás, ao sair do apartamento de Antônio. “O senhor é gentil”, ela diz. “Mandarei o livro pela minha mãe, tá?”. Ele a observa com candura e diz: “Quando quiseres”.

Dominique. Linda. Filha da diarista. Quem diria.

Os carros andam mais um pouco. Agora, parece avançar bastante. A chuva incessante teima em continuar, fazendo com que seu para-brisas comece a ranger a borracha contra o vidro. Consegue avançar ao ponto de sair do congestionamento. Desvia para uma rua paralela, o que o coloca a 10 minutos de casa. Dominique. Morena linda. Como queria vê-la novamente. Ver aqueles olhos verdes, aquele cabelo liso, a pele achocolatada com altas doses de leite. Havia muita vontade.

Chega em casa. Aliviado. Finalmente: casa limpa, comida feita, banho para tomar. Desce do carro. Pega seus pertences e sobe. Os degraus que levam à sala de casa eram poucos, mas pareciam uma eternidade depois de tanto tempo sentado. Pega a chave. Enrola-se. Cai o molho. “Droga”, murmura. Pega as chaves, pondo as mãos direto na que lhe interessava. Abre a porta.

A luz está acesa. A televisão da sala, ligada. Larga suas coisas no sofá, defronte à biblioteca, milimetricamente organizada. Sua esposa, que havia feito Biblioteconomia, fez questão de reorganizar tudo, texto por texto, desde os manuais acadêmicos, as apostilas, os livros infanto-juvenis, até a literatura adulta, teórica, referencial. Vai até o quarto. Despe-se. Separa uma roupa para pôr após o banho. De repente, sente que uma mão quente lhe envolve o tronco.

“Cansado, meu amor?”, ela pergunta. “Sim. Preciso de um banho”, ele responde. “Ah” – Faz com que ele se vire de frente para ela. “Olha pra mim”, ela diz. “Vim só pra te ver”. “E tu sabes que sou sempre todo teu”. “Me mostra”.

Ela se despe. Linda. Aquele corpo amorenado. Aquelas ondulações perfeitas. Um sorriso maravilhoso. Entrega-se.

Acorda no outro dia. Tudo arrumado. A cama, os livros, a sala. Café da manhã posto. Um recado, numa pequena folha: “Meu poema até hoje não foi lido. Só que já li toda tua vida”.

Sagacidade: eis seu nome.

por Lucas Postado em Conto