Praça

“Pai, por que me deixaste aqui? Eu não queria vir pra areia…”

Foi o primeiro pensamento que tive naquele dia. Era um domingo ensolarado, numa praça vasta em área verde flamejante, rica em saúde e ornada por belas violetas roxas num canteiro muito bem cuidado. Havia um banco de areia, no qual os brinquedos que eu mais gostava estavam. Escorregador, trepa-trepa, balanço, gangorra. Era sempre divertido ir pra praça: o Tito e a Lívia sempre estavam lá no mesmo horário. Acho que nossos pais combinavam. Eu chegava lá e o pai já dizia para eu me cuidar, não falar com estranhos, brincar tranquilo com meus amigos.

A Lívia era legal. Gostava de brincadeiras com bola. Jogava futebol conosco. Tinha um chute potente, de bico – quando acertava a bola. Coitada – coordenação não era seu ponto mais forte nesse esporte. Ela levava as bonecas, sempre com roupas ajustadas, além da escova de cabelo escolhida a dedo para pentear suas Barbies. Não se importava de sujar suas roupas de marca e seus cabelos loiros e encaracolados na areia bruta de lá. Era muito legal a Lívia.

O Tito tinha problemas, era certo. Ele sempre vinha com um carrinho. Um por semana, diferente. Os domingos eram divertidos quando ele estava de bem conosco. Quando eu perguntava sobre o carrinho da semana anterior, ele ficava brabo. Não falava. Encolerizava-se. Ficava vermelho. Muito vermelho. Berrava e eu não dizia nada. Achava estranho. Era muita gritaria para tão pouco.

“Pai, por favor. Me tira daqui!”

Quando nos juntávamos, era bom. O Tito, apesar da tenra idade, era afixionado pela Lívia. Ele era maior que eu. Bem magro. Juntando com as atitudes estranhas dele, parecia um mongoloide em grau elevado de alguma síndrome, tal era o jeito que ele a olhava. Eu me enciumava um pouco, mas acho que era mais por não saber o que fazer – parecia que ele queria se adonar dela. Eu caminhava rumo ao balanço, enquanto os dois ficavam lá. Ela, com a Barbie; ele, com o carrinho, mas sem movê-lo, apenas observando a menina.

Começava a balançar. Devagar, visto que minhas pernas ainda não era muito fortes. Aos pouquinhos, ganhando impulso, ganhava altura. Pensava em fazer a volta por cima da barra. Loucura, eu sei. Mas pensava. Nunca fiz. Nesse espaço de tempo eu pensava nos meus brinquedos. Via que meu pai conversava com a mãe de Lívia, segurando minha bola. Às vezes eu os achava muito próximos, mas nunca dei bola realmente. Preferia cuidar da minha amiga. Eu gostava dela. Era muito legal.

“Me segura, pai! Não me deixa aqui!”

Quanto mais alto eu ia, mais eu olhava pra cima. O céu, naquele domingo, ficou nebuloso. Escureceu. Ouvia meu pai me chamar para ir pra casa. Eu queria ficar ali, voando cada vez mais. A Lívia e o Tito ainda estavam ali embaixo, então pra que me preocupar? Fiquei ali. O pai não falou mais nada. Quando olhei para o lado, ele caminhava com a mãe da Lívia, conversando. Parecia feliz. Enquanto isso, eu me balançava – olhava o céu. Aquela nuvem parecia um algodão gigante. Era que nem o algodão que minha mãe passava em minhas pernas quando me arranhava todo nas brincadeiras da escola – o piso de concreto não favorecia qualquer queda. Ardia. “Vai sarar”, ela dizia, “para quietinho”. “Dói, mãe, para”, eu reclamava. “Guri bobo! Isso é para teu melhor”.

Aquele algodão todo se agigantava. Ainda não escurecia, mas era branquinho. Passei a me lembrar que sempre que a mãe me levava pra praça, eu ganhava algodão-doce. Era bom. Um tinha gosto de morango, parecia. Apesar de que, ao perder a cor, o gosto parecia partir também. Sei lá. Era bom. Enquanto o balanço descia, lembrava da minha boca se enredando no algodão; quando subia, todo ele na minha boca. E eu ia e vinha, comendo aquele algodão. Terminei o algodão em doses curtas, bem aos pouquinhos. Só que, ao ver o palito, ele estava ensanguentado.

“Pai!”

Um grito. Volto meus olhos para o chão. Lívia caída. Sangrando. A cabeça enterrada na areia. Crianças correndo por todos os lados. Um adulto amedrontava quem ficou por ali. Eu não sabia quem era. Não sabia como era. Não vi seu rosto. Eu só me balançava. Até a hora em que ele me pegou e saímos de lá. “Pai, me tira daqui!”, eu clamava. “Quieto!”, ele dizia.

Saí do banco de areia. Eu queria ter ficado em casa naquele dia. O videogame era tão bom. Meu pai insistiu demais, querendo que eu visse a Lívia. Eu não sabia o motivo. Nunca soube. A mãe dizia pra eu ir, pois meu pai argumentava que era pro meu bem sair para outro lugar que não fosse a escola durante a semana. Eu sempre acreditei neles. A mãe fazia umas caras estranhas pro pai, mas assentia e íamos. No caminho, o pai falava no quanto a Lívia era boa comigo. Sempre gostava de saber disso, pois  quando brincávamos não parecia tão assim. Ouvi um tiro. E outro grito.

Lívia morta. Era estranho pensar nisso. Nunca soube o que era a morte e ela só parecia dormir com molho de tomate na cabeça. Só que não era tão simples. E eu estava saindo da praça, carregado por aquele homem sem face. Eu tentava olhá-lo, contudo ele me pegou de um jeito que não me fazia sequer levantar a cabeça direito. Sentia um braço forte cruzando minha barriga, enquanto ela se contorcia. Sentia vontade de exalar odores. Flatulência ficou muito forte. É engraçado isso, estava nervoso demais e meu estômago atacava. Que eu faria? “Me solta!”, eu dizia. “Vai comigo, guri!”

“Pai, por que tu sumiste? Eu só queria que me levasses de lá! Pra que nós fomos, pai?”

Subia ruas e descia. Entrava em lugares estranhos – uma casa velha numa rua silenciosa; um quarto sujo numa pensão mal cuidada; uma rua estreita, sem qualquer pessoa. Becos, buracos, nada. Lugares-nada. Ninguém vivia neles. Eu não via ninguém. Ninguém com cara, com jeito de gente. Eu só via o chão, carregado daquela maneira. “Vou te largar aqui”, ele disse. “Por quê?” – Barulho de sirene. O homem queria fugir. Eu via seu nervosismo, se virava muito para trás no decorrer do caminho. O que será que ele queria? Por que a Lívia tinha morrido? Por que eu não via nada? Eu queria algodão doce naquela hora, só isso. Queria minha mãe por perto.

Caí e ele se foi. Minutos depois, a polícia me achou. Levaram-me de volta à praça, não sei por quê. Eu queria ir pra casa, ver minha mãe, contar o que aconteceu, saber de meu pai. Ele me deixou lá! Eu não o vi mais depois que estava conversando com a mãe da Lívia, feliz. Eu também estava feliz, mas pelo algodão que eu via no céu. Não queria mais saber do Tito e da Lívia. Nada daquilo.

Ao chegar na praça, o local estava interditado. O banco de areia ainda tinha o corpo de Lívia ensanguentado. O Tito não estava mais lá. Era um silêncio mortal na volta onde eu estava. Aproximei-me mais das pessoas que estavam conversando. Olhei de novo pra Lívia. A boneca dela estava lá, toda suja. Senti nojo. Olhei de novo pra cabeça de Lívia enterrada na areia e não quis olhar mais. Não era uma cena legal. Não era nada bom.

“Filho!”, surgiu minha mãe.

Abraçamo-nos. Abraçamo-nos em meio ao silêncio horrorizante da praça. Silêncio mórbido, de castas almas perdidas numa areia coberta de sangue e dor. De fora, almas impuras observavam com pavor mortal o resultado dos acontecimentos daquela hora. Eu disse que queria ir pra casa. Minha mãe, chorando, dizia pra irmos, mas que eu ficaria com minha avó, pois precisaria resolver problemas. Perguntei por meu pai. Ela não me disse nada, apenas para ir.

Cheguei em casa e minha avó estava arrasada. Dizia pra eu tomar um banho, depois conversaria comigo. Obedeci. Era tudo que eu precisava: um bom banho, deitado naquela banheira, com aquele pato que sempre me fez companhia. Pato que meu pai me dera. E meu pai, onde estaria?

Tantos anos se passaram. Tanto tempo se foi. Um desejo incólume me penetrou as lembranças, anos atrás. Eu não queria repetir meu pai. Eu não queria repetir tudo que acontecera para ter um final como aquele. Amo minha esposa. Desejo-a ardentemente, noite e dia. Não quero saber de qualquer coisa que seja diferente disso. As consequências podem ser totalmente descabidas por um ato simples, modesto, despretensioso. Imagine quando fosse por algo que realmente abalasse a integridade de um homem. Nunca mais as coisas seriam como um dia pareceram. Muito menos aquela praça.

por Lucas Postado em Conto